Essa fatia de gente igual a nós: os Sírios
É em sítios públicos e conversas circunstanciais que as pessoas dizem as maiores barbaridades. Sentem assim uma espécie de liberdade inusitada, que os leva a dizer o que pensam e raramente admitem. Como ninguém se preocupa muito em debater ideias parvas tidas em conversas circunstancias de café ou transportes públicos, as pessoas vão atirando para o ar o que lhes vêm à cabeça, na esperança de que alguma alma com pouco juízo crítico concorde. E devem sentir-se muito felizes neste exercício egocêntrico que é expor as fabulosas opiniões por mais ridículas que sejam.
Deslocando o tema deste texto para outro tema completamente diferente que mais à frente se há-de ligar ao primeiro. Quando as pessoas viram aquela criança Síria morta à beira mar, ficaram em choque. Um murro nos estômago difícil de descrever. Eu, confesso, a primeira vez que vi a imagem não percebi ao certo do que se tratava. Havia ali qualquer coisa que não batia certo. E quando me apercebi exatamente do que se tratava, fiquei ali uns instantes a remar contra o que os meus olhos viam, como se fosse possível a imagem ter outro significado que não aquele. As pessoas fungaram lágrimas contidas em frente à televisão, mudaram de canal, fecharam à pressa a página da Internet em questão. Ás vezes a imagem que as despertava para aquela realidade tão dura que afinal está aqui tão perto vinha a mente. E as pessoas lá se lembravam daquela gente toda, coitadinha, que atravessava o oceano e que morria para fugir à guerra. Crianças incluídas, pobrezinhas.
Essas mesmas pessoas que tantas vezes se lembraram das criancinhas Sírias, que sentadas no café ou amparando-se a um poste no autocarro iam verbalizando palavras várias sempre munidas do diminutivo como um apêndice, agora tecem comentários vários, desta feita para insultar esses Sírios que vêm para aí tirar o que é nosso. Morressem lá todos pelo mar. Que se mantivessem longe. Que isso é gente pior que os ciganos. Que ficassem lá na terra deles em vez de virem para cá. E de repente, não sei que é feito de toda aquela comiseração que iam acenando como uma bandeira. E mete-me uma aflição desgraçada pensar que há pessoas que não só lhes passa isto pela cabeça como vão verbalizando. E há umas quantas outras, desprovidas certamente de qualquer raciocínio, que vão acenando e dizendo que sim. E eu questiono-me se algumas delas pensou que nascer na Síria, nascer no Zimbabué ou nascer na Austrália é uma coisa palpável que se traduz nos genes e é capaz de distorcer e moldar a personalidade de tal forma. Se o sítio onde se nasce é assim tão importante ao ponto de tornar alguém um delinquente, só porque teve o azar de nascer com as coordenadas geográficas. Eu questiono-me sequer, se essas pessoas já equacionaram remotamente o terror que deve ser para aquela gente fugir da guerra. Eu sei, que no meio daquelas pessoas provavelmente não vêm só pessoas inocentes, mas li algures num artigo, qualquer coisa muito similar a que "prefiro morrer num atentado bombista a ficar com o peso na consciência de que não estendi a mão àquelas pessoas".