Vou-lhe contar como foi....
Disse-lhes para cima de muitas vezes que não queria ir para o asilo. Que ficava bem em casa. Que ainda sabia cuidar bem de mim. As senhoras do Centro de Dia iam lá deixar o almoço e o jantar. Há tarde ia dar uma volta no jardim lá da vila. Costumava jogar umas partidas de sueca com o Zé Carlos e o António. Às vezes falávamos só da vida. De como as coisas tinham mudado. Da volatilidade da vida. Depois ia para casa.
Não era muito bom. Estava velho. E tinha muitas saudades da minha Elisa. Mas também não era mau. Era a vida. Sabe tinha um cãozito lá em casa. Gostava do bicho. Era um rafeirote, mas fazia-me companhia. Parece que entendia tudo o que eu lhe dizia. Não sei o que é feito do Elias. Bom bicho. Não dava muito trabalho. Mas eles não quiseram saber. Não quiseram saber de nada. Não quiseram saber de mim, quanto mais do animal...
Um dia, avariou-se uma luz lá em casa. Fundiu-se. São coisas que acontecem, a gente sabe. Subi a uma cadeira e fui trocar a luz. Se a minha Elisa fosse viva, havia de me ralhar, porque ela não gostava nada que eu me metesse em trabalhos. Tinha medo que acontecesse alguma coisa. Quando estava a subir, pus o pé em falso e caí. Estatelei-me no chão. Esmurrei os cotovelos e fiz um entorse no pé. O médico diz que ainda está para saber como é que não parti nada. Sabe que isto é carne rija. Pensa o quê? Fui parar ao hospital. E fiquei lá uns dias internado. Gostava lá deles. Já me conheciam. Era o Sr. Amadeu. As enfermeiras eram muito simpáticas. Entretanto tive alta. E eles levaram-me para lá.
São só velhos. Não gosto de estar lá. Tinham-me dito que tinha um quarto só para mim. Não tenho. O velho que está ao meu lado ressona. Fica com a boca toda escancarada e faz uma barulheira desgraçada. No outro dia, durante a noite, estava farto de estar na cama a pensar em coisa nenhuma e levantei-me. Peguei nos óculos, já não vejo nada sem eles, num livro que para aí tinha e fui com o andarilho para a saleta. Aparece a D. Júlia, com o dedo em riste, a perguntar-me o que é que estava a fazer às 3h da manhã na saleta. Olhe que esta, com 85 anos vêm-me dizem o que é que posso ou não fazer. Tenho insónias, mas não posso ler... Lá fui, contrafeito, pelo braço dela para o quarto. Escusado será dizer que o outro ressonava.
Ainda não lhe disse, mas a cama em que durmo era de um tal Fernando. Sabe o que é que lhe aconteceu? Não é muito difícil. Daqui só saimos para um sitio...
Nós lá, temos horas para tudo. Tudo. Para almolçar, jantar, lanchar, tomar o pequeno-almoço, ver televisão, fazer a higiene. Normalmente há sempre problemas às refeições. Há uma velhota que grita muito. Dizem que está demente. Ela diz que não quer comer. Apertam-lhe o nariz e ela abre a boca. Às vezes chora. No outro dia, sentou-se na saleta. Há lá um espelho muito grande. Eu estava lá ao lado dela. Ela virou-se para mim e apontou para o espelho:
- Olhe ali, Sr. Amadeu, acho que é a minha filha. Mas está mais enrugada, não deve ser ela, pois não? Há uma temporada que não a vejo.
A filha da D. Cidalina morreu. Não era ela. Tem o filho, mas nunca a veio visitar.
Eu também tenho filhos. Tenho três. Dois rapazes e uma rapariga. Foi o mais velho que me quis que eu fosse para o asilo. Os outros dois não queriam muito, mas ele disse que não havia outra solução. Vão-me lá visitar todas as semanas rotativamente. No outro dia, um deles esqueceu-se. Não foi por mal, mas nesse semana não tive visitas. Há alguns que desde que lá estão nunca tiveram visitas... Acredite que é triste.
Hoje fazia 60 anos que eu e minha Elisa nos tinhamos casado. Sabe, foi aqui que nos conhecemos. Ela foi-se embora há 2 anos. Não há um dia que não pense nela. Era muito bonita. Tinha olhos verdes e quando se sentava cruzava sempre as pernas. Muito delicada, muito bonita.
Ontem, foram-nos deitar. Não dormi nada a noite toda. Ás cinco da manhã, peguei no andarilho e fui-me embora. Ninguém notou. Não foi uma fuga muito cinematográfica. A menina Joana, que é nova lá, ainda passou por mim, mas levava uma caixa cheia de roupa na mão, ia tão apressada que nem notou. Apanhei a camioneta das seis da manhã e vim para aqui. Foi aqui que a conheci. Era tão bonita. Não me leve já para lá. Deixe-me ficar aqui só mais um bocadinho, pode ser?